Gastronomia nas favelas mostra a diversidade do Rio de Janeiro
Da vendedora de empadas que canta funk e virou personagem de novela no Complexo do Alemão, à rabada que tira do sério a atriz Roberta Rodrigues, no Vidigal.
Quem está partida é a costelinha assada com baião de dois, porque a cidade deve se unir pela boca. Da laje à birosca, o roteiro está nas mãos de gulosos de todas as freguesias, que ganharam passaporte para conhecer paisagens únicas de cultura e natureza.
A carne de capivara é bem temperada na Rocinha, e no Morro dos Prazeres o frango inteiro vai para a churrasqueira.
As favelas do rio de Janeiro são repletas de delícias gastronômicas e apresentam comidas com personalidade. Chefs carismáticos fazem culinária de qualidade em cantinhos com charme, entre vielas e lajes, em comunidades pacificadas da cidade maravilhosa. Há bares também nas comunidades do Morro da Providência, Santa Marta, Tabajaras e Chapéu Mangueira, todas pacificadas.
As favelas tiveram origem na cidade do Rio de Janeiro em meados do século XIX. Transformações sociais desencadeadas por fenômenos como a decadência da produção cafeeira no Vale do Paraíba, a abolição da escravidão e o início desenvolvimento do processo industrial no país, trouxeram muitos ex-escravos e europeus, especialmente portugueses, para a então capital do Brasil. O grande crescimento demográfico da cidade inchou sua área central, que tradicionalmente concentrava vários cortiços. O então prefeito da cidade, Cândido Barata Ribeiro, iniciou a perseguição a esse tipo de moradia, o que culminou, em 1893, na demolição do cortiço "Cabeça de Porco". Todo o processo de despejo desalojou cerca de 2 mil pessoas e um grupo de ex-moradores do cortiço conseguiu permissão para construir suas casas no Morro da Providência. Outro grupo de soldados que lutaram contra a Revolta da Armada recebeu permissão para construir moradias sobre o Morro de Santo Antônio, dando início aos primeiros aglomerados que mais tarde seriam chamados de "favelas".
No Brasil são consideradas por muitos como uma consequência da má distribuição de renda e do déficit habitacional no país. Porém, segundo pesquisa da professora Alba Zaluar, financiada pelo CNPQ e pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, e publicada no jornal O Globo de 21 de agosto de 2007, apenas 15% dos moradores das favelas cariocas gostariam de deixar o morro.
A Rocinha é uma das maiores favela da América Latina contando com mais de 70 mil habitantes, é considerada um ponto turístico da cidade, procurada por turistas do mundo todo que sobem o morro em busca de tradição e cultura. É uma favela localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, na Gávea. Por estar localizado em uma região muito próxima à APA, o bairro representa possibilidades de mesclar turismo em favela com ecoturismo. Esse segmento contemporâneo geralmente ocorre em áreas urbanas, mas, neste caso, a área natural do entorno e a conjugação com outros passeios ligados ao ecoturismo, tornam-se pontos de atração turística.
Em outubro de 2015 aconteceu o primeiro Festival Comida de Favela no Complexo de Favelas da Maré, zona norte do Rio de Janeiro. Paella, croquete de cordeiro com molho de maçã, salmão ao molho de camarão, lula com alcaparra, cachupa angolana, feijão mexicano, sushi, hot gourmet, churrasco misto, empadinha de frango, batata recheada, carne assada com batatas coradas e galinha ao molho pardo foram alguns dos pratos servidos no evento gastronômico, mostrando a diversidade gastronômica da comunidade.
Em setembro de 2015, o Sebrae/RJ realizou o segundo Circuito Gastronômico Sebrae na Mesa Comunidades 2015 com a participação de 59 empreendedores de gastronomia dos morros: Santa Marta, Tabajaras, Cabritos, Chapéu Mangueira, Babilônia, Rocinha, Vidigal, Providência, Pinto e Salgueiro, além da comunidade da Maré. No circuito, os visitantes puderam degustar autênticos pratos da “culinária carioca de raiz” que foram comercializados nas versões convencional e degustação.
O objetivo foi mostrar e valorizar o potencial gastronômico das comunidades pacificadas e fomentar os negócios locais, bem como contribuir para geração de emprego e renda. Com isso o Sebrae/RJ também contribuiu para a diferenciação e inovação dos produtos oferecidos pelos empreendedores das comunidades. Além do circuito, houve intensa programação cultural voltada para turismo, artesanato, dança e música.
Não é preciso ir a um restaurante refinado e caríssimo para experimentar carne de coelho, faisão, jacaré ou capivara. Quem quiser subir o morro pode encontrar as iguarias na mais conhecida favela do Rio de Janeiro. É só procurar pelo Glimário, um chef recifense que já trabalhou em locais famosos antes de se tornar um empreendedor.
Glimário dos Santos é o dono do Porcão da Rocinha - alusão a uma tradicional churrascaria carioca, e seu restaurante exótico, na Travessa Gregório.
O pernambucano Glimário faz carnes exóticas, como rã e avestruz em plena Rocinha
Com o programa de pacificação do Rio, os cariocas romperam a cidade partida e passaram a circular mais livremente em espaços antes considerados fora dos limites de segurança, devido ao domínio de favelas por traficantes armados.
Sérgio Bloch, um cineasta e apaixonado por comida, durante a gravação de um documentário sobre esses locais, buscou lugares charmosos e com comida boa para se alimentar durante as gravações. Encontrou sabores surpreendentes, e a procura inspirou o “Guia Gastronômico das Favelas do Rio”, um livro em parceria com a jornalista Ines Garçoni. O livro conta a história de cada favela e seus personagens cozinheiros, destacando os melhores quitutes.
O Guia Gastronômico das Favelas do Rio (Abbas Edições e Arte Ensaio, 170 págs., R$ 70,00) sugere passeio por 22 estabelecimentos de oito favelas, desvendando um mar de sabores do tamanho daquele azul que se avista do Chapéu Mangueira, um ótimo investimento para amantes de boa comida regada a cultura.
“Às vezes o cara adora um pé-sujo no Leblon ou na Tijuca, mas torce o nariz quando se fala em favela. O Guia ajuda a quebrar esse preconceito, integrar. A diversidade é enorme, com comida boa e vistas incríveis”, afirma a autora Ines Garçoni.
A equipe de produção visitou 97 estabelecimentos nessas oito favelas pacificadas – entre restaurantes, bares, biroscas e “lajes”, terraços. Há de tudo, de botecos com pastéis deliciosos a japoneses comandados por nordestinos e até a carne de caça, com sabores exóticos, como javali, capivara e avestruz, que brotam de um “freezer mágico” do Glimário, em plena Rocinha, a maior favela do Brasil. Há dicas no Morro da Providência, Santa Marta, Tabajaras, Chapéu Mangueira, Vidigal, Rocinha, Morro dos Prazeres e Complexo do Alemão.
Mas para fazer parte do livro, não bastava ter uma comida gostosa e ficar em uma ladeira, rua ou beco de favela pacificada. Para os autores, era fundamental que os estabelecimentos fossem de fato operados por “crias” locais, abrissem com frequência e não só ocasionalmente, dependendo do humor do dono, além de serem em comunidades seguras, que não exponham a risco os leitores/frequentadores.
Sanduíche "big favela", de Jorge Ribeiro, sucesso no Alemão
São muitos os estabelecimentos famosos nas favelas e se destacam o Bar do David, terceiro lugar em concurso de comidas de botequim com o tropeiro carioca e Adriana do Complexo do Alemão, anunciando em plenos pulmões suas empadinhas, de jaleco impecavelmente branco e isopores térmicos nas mãos, para vender os quitutes, Adriana canta paródias de canções de funk, enquanto a molecada local faz passinho. Em geral, são lugares com pouco estrutura e muita cor local, com comida caseira e familiar como feijoada, frango à passarinho ou bolinho de abóbora e alguns locais mais sofisticada como sushi, codorna ou carne de rã.
Pescador e mestre de bateria de escola de samba, filho de grande líder comunitário no Chapéu Mangueira, David Vieira ficou conhecido no mundo inteiro pela comida de seu Bar do David, ao sair em reportagem do jornal ‘The New York Times’, e já subiu no pódio de concurso de botecos com seus petiscos
“Estou gravando em Jacarepaguá e ligo para reservar minha feijoada no Bar Lacubaco, apesar de que a rabada é minha preferida”, conta a atriz Roberta Rodrigues, no ar como a Maria Vanúbia da novela ‘Salve Jorge’.
Moradora do Vidigal e freguesa do bar de Fábio e Fabíola, Roberta faz na novela o papel de moradora do Complexo do Alemão, onde Adriana Souza, a “moça da empadinha”, vende seus quitutes cantando funk.
Adriana acabou também no folhetim de Glória Perez, fazendo o papel de si própria: “Agora me divido entre as empadas e a TV, e ainda levo brigadeiros para a gravação”, conta.
No Tabajaras, a dupla de cunhados cearenses que já trabalhou na cozinha do chef francês Olivier Cozan, Romero e Augusto, tem o próprio Olivier como freguês e fã, assando disputadas costelinhas no Restaurante 48. Ou, na tradição francesa, servindo omeletes de champignon e de queijo com presunto.
O Bar Lacubaco fica no Vidigal, onde tem uma das vistas mais bonitas do Rio. O salão é bem simples e curioso. No segundo andar, alguns pratos são preparados. Mas é atrás de um pequeno balcão que tem a outra parte da cozinha e é onde eles são finalizados. Na parede, reportagens que o restaurante já saiu. Também tem fotos com amigos e famosos que já passaram pelo lugar. Bem restaurante do tipo "impossível não se sentir em casa".
No Morro da Providência, o Sabor das Loiras reúne a mãe Rejane e a filha, Bárbara, que adoram abóbora e com ela fazem bolinhos recheados de carne-seca. Ou a lasanha de abóbora com carne e molho branco.
Sem falar nas caipirinhas de mentol feitas com bala Halls ao estilo Ferran Adrià, no Morro da Providência.
Ferran Adrià, quem diria, acabou na Providência. Porque enquanto o alquimista planejava seus passos com a fundação gastronômica vanguardista que foi inaugurada em 2014, na Espanha, três amigas do morro estavam ‘causando’ na birosca Favela Point, no melhor estilo do gênio.
Foi Ferran que resolveu visitar o baleiro e triturar balinhas para temperar algumas frutas e sobremesas com o composto mentol que nelas habita.
A receita de melancia com bala de menta está no livro A Refeição em Família: Cozinhando em casa com Ferran Adrià (Ed. Agir), lançado com pratos devorados no intervalo do trabalho pelos cozinheiros da brigada do extinto El Bulli.
E agora é o trio formado por Lidiane, Sônia e Janice, do alto dos 175 degraus da escadaria principal da comunidade, que anuncia os sabores das batidas de vodka que reúnem de noite o pessoal: maracujá, pessêgo, coco, morango, bombom e… Halls.
Na mixologia popular da primeira favela do Brasil, as balas refrescam bebidas e canudos.
Culpa novamente do mentol, aquele cara que produz sensação de mudança de temperatura na boca ou na pele, faz a água parecer gelada fora da geladeira, refresca geral. Um velho conhecido, produzido a partir do óleo de menta ou sintetizado em laboratório para anestésicos, descongestionantes, chicletes e drops variados.
No menu do Favela Point, entretanto, em vez de esferas de azeite há frango à passarinho, linguiça acebolada, bolinhos de arroz.
..."Suspenderam os Jardins da Babilônia, e eu pra não ficar por baixo resolvi botar as asas pra fora"... Se está de passagem pelo Rio de Janeiro vale fazer como a Rita Lee, botar as asas de fora e conhecer os Jardins da Babilônia carioca.
Não tem cobertura de hotel ou varanda de Zona Sul que se compare às vistas do Rio proporcionadas pelas lajes nas partes altas das favelas.
Destacando comida e paisagem, pontos como a Laje Do César e sua feijoada, no topo do Chapéu Mangueira, no Leme, trabalham com reservas de grupos e encantam fregueses de todas as partes do mundo.
O visual na Laje do César, no morro da Babilônia, vem acompanhado além de feijoada, da famosa moqueca e do mocotó. Mas é preciso ligar (21-25302506) e fazer reserva para apreciar a vista e a comida.
O terraço sobre a Princesinha do Mar oferece a melhor vista entre todos os bares que surgiram ou se tornaram possíveis nas favelas cariocas onde o processo de pacificação obteve os melhores resultados.
O morro do Leme se divide em duas comunidades: o Chapéu Mangueira de um lado e na outra face a Babilônia, de onde o bar abre vista para o litoral e o recorte montanhoso da Zona Sul.
Vai uma lula crocante com tempero de Pedra do Leme? Moqueca de peixe com arroz de coco e farofa de dendê, ao sabor da Ilha Rasa? Um risoto de bobó de camarão, enfeitado com manjericão, queijo e pimenta biquinho à moda do Forte de Copacabana?
Morador da favela que há muito apronta belos rangos por ali, o chef Rubens Zerbinato percebeu no movimento crescente de turistas estrangeiros ou cariocas que estava na hora de transformar em bar a já conhecida Laje do César, abrindo todos os dias.
Pediu as contas de seu emprego na cozinha do Marina Palace, hotel de luxo em Ipanema, e arregaçou as mangas para criar cardápio enxuto e criativo, preciso para o negócio nas alturas.
Na lista dos petiscos, um achado, o harumaki de feijoada. Depois dos bolinhos e pasteis, o rolinho é único no Rio e leva feijoada completa por dentro com couve, carne seca, paio e tudo mais.
Para beber, destacam-se Stella e Heineken entre as louras, além de sangrias de tinto e branco e os drinques refrescantes do chef. Dois deles finalizados com uma espuma de mel e gengibre feita no sifão: o Chop do Alto, com suco de tangerina, gelo e Absolut, e a Caipichop, caipirosca de limão e essência de maçã. O Pôr do Sol leva espumante, gelo e essência de melancia.
Boa companhia para o crepúsculo verdadeiro que arrebata a visão, dia sim e outro também, no Bar do Alto da Babilônia. Bar do Alto. Rua São Jorge, casa 4, escadaria que sai no final da Ladeira Ary Barroso (2530-2506). De quarta a domingo, das 13h as 21h. Aceita cartões Visa e Mastercard.
Tia Léa, já famosa cozinheira de celebridades, conhecida como a “Ana Maria Braga do Vidigal”, se destaca com seus churrascos, moquecas e bufê variado na laje com vista para o mar.
Já no Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, quem se abre para os olhos é a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar, enquanto os frangos e costelas assadas no bafo vêm à mesa acompanhados de aipim, farofa, arroz, batatas fritas, molho à campanha e outras gostosuras no Bar do Tino.
Programas distantes em outros tempos, agora ao alcance dos pés e da boca.
Dicas para subir o morro e encher a pança
MORRO DA PROVIDÊNCIA:
* O Sabor das Loiras. As ‘loiras’ servem lasanha de abóbora com carne e frango à parmegiana. Bolinho de abóbora com carne seca é o carro-chefe.
Rua da Bica 41 (2283-2660/9174-1970). Diariamente, das 8h às 23h.
SANTA MARTA:
* Bar do Zequinha. Serve delicioso frango à passarinho, carré ou contrafilé com feijão, arroz, salada e fritas.
Rua do Mengão 14 (7321-7456). Diariamente, das 11h às 2h.
TABAJARAS:
* Restaurante 48. Romero Moreira e Augusto Alves servem costelinha assada com baião de dois, além de pratos como filé de peixe ou estrogonofe.
Rua Euclides da Rocha 48, acesso pela Ladeira dos Tabajaras (3208-0017). De ter a dom, das 7h à meia-noite. Seg, das 7h às 16h.
CHAPÉU MANGUEIRA:
* Bar do David. David serve feijoada de frutos do mar no fim de semana e petiscos como o Tropeiro Carioca, com feijão, couve, bacon, carne-seca, paio e laranja arrumados na travessa.
Ladeira Ary Barroso 66 (7808-2200). De ter a dom, de meio-dia às 20h.
* Laje do César. Atende grupos de, no mínimo, dez pessoas com hora marcada. A especialidade é a feijoada, mas oferece gostosuras como cozido, moqueca capixaba e mocotó.
Rua São Jorge, Casa 4 (2530-2506 / 7879-6319).
VIDIGAL:
* Bar Lacubaco. Pratos como frango com quiabo e angu, costela com aipim, rabada e muitos outros, bem temperados, fazem fama na comunidade.
Avenida Presidente João Goulart 538 (2422-6649). De seg a sáb, das 11h30 às 16h.
* Tia Léa. Atende com reserva pelo telefone e o pagamento é antecipado. Comida caseira com requinte, bufê variado e festas com churrasco e feijoada, entre outras especialidades.
Rua Moema Noronha, Casa 1 (8089-9961/7551-8095). Ao lado da Associação de Moradores.
ROCINHA:
* Carnes do Glimário. Conhecido como o ‘Porcão da Rocinha’, assa carnes exóticas como codorna, javali e até lagostas.
Travessa Gregório 5 — primeira à direita, ao chegar no Valão (7897-2300). De ter a dom, das 10h à meia-noite.
MORRO DOS PRAZERES:
* Bar do Tino. Frango e costela suína no bafo em temperos secretos.
Rua Almirante Alexandrino 3.780, casa 7 (2225-5780). Sáb e dom, das 8h às 20h.
COMPLEXO DO ALEMÃO:
* Empadinha da Adriana. Ela canta paródias de funk para anunciar as empadas, aparece em ‘Salve Jorge’ e oferece sabores como camarão, queijo e bacalhau.
* Circulando pela comunidade, sem local ou dia fixos, Adriana atende pelo telefone 7232-8080 e costuma vender às sextas-feiras ou sábados.